Herniação de rim esquerdo em adulto por defeito de Bochdalek: correção videolaparoscópica
INTRODUÇÃO
A Hérnia de Bochdalek é considerada uma doença congênita resultante da falha do fechamento da membrana pleuro-peritoneal no período intrauterino, promovendo uma falha de formação do forame diafragmático posterolateral1. Este defeito acarreta na protrusão transdiafragmática do conteúdo abdominal para a cavidade torácica, configurando-se, então, em uma hérnia diafragmática congênita (HDC)1. Entre as HDCs, cerca de 85% são do tipo Bochdalek2. As HDCs possuem uma incidência de um a cada 2500 nascidos e são rotineiramente diagnosticadas entre o período neonatal e a idade pré-escolar, quando o paciente apresenta sintomas decorrentes de uma compressão do conteúdo herniado com o pulmão ipsilateral, encarceramento intestinal ou disfunção orgânica3. A mani-festação dos sintomas e sua morbidade são proporcionais ao tamanho da hérnia transdiafragmática da víscera ou do omento. As maiores Hérnias de Bochdalek, que normalmente se apresentam de forma sintomática logo após o nascimento, 80% dos casos são do lado esquerdo e os pacientes podem ter complicações graves, geralmente causadas por hipoplasia pulmo-nar. Ademais, estruturas retroperitoneais também podem passar pela falha, como gordura retroperitoneal ou rim2. Pequenas hérnias de Bochdalek podem permanecer assintomáticas e serem descobertas inci-dentalmente em exames de imagem4. A incidência em adultos corresponde a apenas 0,17% a 6% dos casos, com predominância do lado esquerdo1,4. Nestes, os sintomas podem se desenvolver tardiamente: dados da literatura descrevem intercorrências cardiovasculares, respirató-rios e quadros obstrutivos abdominais em adultos e idosos2,4. O presente trabalho visa compartilhar um raro caso de uma Hérnia de Bochdalek em adulto, com herniação de rim esquerdo e baço acessório para tórax e seu tratamento cirúrgico.
RELATO DO CASO
Trata-se de um paciente do sexo masculino, de 41 anos, que realizou uma tomografia computadorizada de tórax na investigação diagnóstica de uma síndrome gripal (Figuras 1 e 2). Esse exame mostrou uma volumosa hérnia diafragmática pos-teromedial esquerda, com insinuação intra-torácica de dois pequenos baços acessórios e do rim e adrenal esquerdos, além de gordura peritoneal e retroperitoneal. Não havia sinais de sofrimento vascular. Notou-se atelectasia restritiva do parênquima da base pulmonar esquerda. Não havia ne-nhum sintoma relacionado a hérnia apesar da espirometria mostrar capacidade vital forçada expiratória (CVF) de 2,94 (reduzida, pois a faixa de normalidade é entre 3,67 a 5,45), sugerindo restrição moderada. Pelo risco de complicações associadas a essa doença, foi indicada correção videolapa-roscópica da falha diafragmática.
Figura 1. TC do tórax em anteroposterior evidenciando o conteúdo herniário.
Figura 2. TC de perfil do tórax evidenciando o conteúdo herniário.
Com o paciente sob anestesia geral e posicionado em decúbito dorsal horizontal com os ombros estendidos, através de uma pequena incisão mediana supra-umbilical, realizou-se o pneumoperitônio aberto. Não havia nenhuma particularidade na ins-peção da cavidade abdominal. Com o auxílio de um bisturi harmônico foi realizada a liberação do ângulo esplênico do cólon e do baço com a visualização de um orifício posterior na cúpula diafragmática (Figura 3). Foi dissecado o colo desse orifício e reduzido o seu conteúdo herniário: baço acessório e rim com gordura pe-rirrenal (Figura 4). Durante a liberação desse conteúdo, foi aberta a pleura parietal com formação de enfisema pré-peritoneal
Figura 3. Visualização do orifício na parede posterior da cúpula diafragmática.
Figura 4. Conteúdo herniário: baço acessório e rim com gordura perirrenal.
O fechamento da falha diafragmática foi feito através de uma sutura contínua com fio barbado (Figura 5) sendo que, ao final da linha de sutura, foi solicitada a expansão pulmonar esquerda com manobra de Valsalva (realizada pelo anestesista). Optou-se pela drenagem pleural desse lado com dreno de “pigtail”.
Figura 5. O fechamento da falha diafragmática foi feito através de uma sutura contínua com fio barbado.
O paciente foi encaminhado para unidade de terapia intensiva (UTI) após o procedimento e obteve alta da UTI no dia seguinte. No segundo dia pós-operatório, paciente não relatava dor e aceitava bem a dieta. O débito do dreno de tórax no 1º dia pós-operatório foi de 500mL, de 1000mL no segundo dia e menor que 100mL no 3º dia (sempre de aspecto sero-hemático). Esse dreno foi retirado no quarto dia de pós-operatório quando o paciente teve alta hospitalar.
DISCUSSÃO
Do ponto de vista embriológico, o diafragma começa a se desenvolver durante a 4ª semana de gestação. No segmento inferior da cavidade pericárdica, forma-se o centro tendíneo do diafragma, a partir do septo transverso, o qual delimita as cavidades torácica e abdominal. As mem-branas pleuroperitoneais na porção lateral da parede crescem ventralmente e se fundem com o mesentério dorsal do esôfago e com o septo transverso, ocluindo o canal pericardioperitoneal. Esta fusão ocorre nos estágios finais e é anatomicamente vulne-rável. Forma-se a Hérnia de Bochdalek no trígono lombocostal, que é a junção entre os grupos musculares lombares e costais, localizado na região posterolateral do diafragma. O fechamento completo ocorre no lado direito antes do lado esquerdo1,5.
Mullins et al. pesquisaram a inci-dência da Hérnia de Bochdalek por meio de 13.138 tomografias computadorizadas em adultos. Nesta pesquisa, a presença desta doença foi constatada em apenas 0,17% dos indivíduos, no qual 63% predominavam o defeito no lado direito e 77% dos pacientes eram mulheres6. Esse fato nos mostra que há uma diferença demográfica entre indivíduos assintomáticos e sintomá-ticos, sendo estes predominantemente Hérnia de Bochdalek no lado esquerdo. Essa diferença de sintomatologia pode ser explicada pelo fato do lobo caudado do fígado comprimir o canal pleuroperitoneal, evitando uma possível herniação5,7,8. Ge-ralmente, encontram-se no saco herniário desta doença congênita cólon (63%), estômago (40%), omento (39%) e intestino delgado (28%). É incomum encontrar a cauda do pâncreas, o baço e o rim9.
Deve-se ressaltar a grande dificul-dade diagnóstica da Hérnia de Bochdalek, devido à sua inespecificidade clínica e à sua raridade. Seus sintomas são variados, vagos e inespecíficos, que podem incluir sinais torácicos e abdominais2. Thomas et al. relataram que 86% dos adultos são sintomáticos, com dor abdominal (62%) e sintomas pulmonares (40%) sendo os mais comuns. Sinais de abdome agudo obstru-tivo foram observados em 36% dos casos. Outros sintomas (9%) englobam fadiga, doença do refluxo gastroesofágico, insu-ficiência cardíaca, icterícia e hipertensão9.
Dessa forma, exames de imagem são extremamente importantes para confirmar seu diagnóstico. Entretanto, a radiografia anteroposterior e laterolateral de tórax pode não determinar a Hérnia de Bochdalek, pois, além da dificuldade atrelada à delimitação do saco herniário, seu achado normal não exclui a existência da doença1,9. A tomografia computadorizada (TC) é uma modalidade de diagnóstico rápido e que pode ser utilizado para melhor carac-terização e confirmação da HDC10. Os achados típicos na TC são a presença de gordura ou tecido mole sobre a porção posterolateral do diafragma, evidenciando uma massa contínua, que atravessa a falha diafragmática. Ademais, é possível realizar o diagnóstico da Hérnia de Bochdalek por meio da ressonância nuclear magnética, a qual também revela a herniação e a irregularidade anatômica do diafragma com precisão11.
A correção cirúrgica do defeito é a terapia recomendada em todos os pacientes com Hérnia de Bochdalek, indepen-dentemente da presença de sintomas7.
O tratamento consiste na redução do con-teúdo herniado para a cavidade abdominal e correção da falha diafragmática Em uma revisão sistemática, Ramspott et al. observaram que a realização da sutura diafragmática foi a preferida (45% dos casos), seguida pelo uso de tela (43%) e pelo o uso de ambos (16%). Notou-se que a sutura com fio não absorvível e o uso de tela não absorvível estão associados à menor taxa de complicação e à menor taxa de recidivas. Entretanto, como se trata de uma doença rara, não existem estudos que comprovem que uma técnica é superior à outra.
Tanto a toracoscopia, quanto a laparoscopia estão descritos na literatura no tratamento da Hérnia de Bochdalek (Tabela 1). Machado et al. mostraram que o emprego da cirurgia minimamente invasiva está associada a menor morbidade (9%), nenhuma mortalidade e menor tempo de internação hospitalar (Tabela 2). Entre as morbidades, o pneumotórax é caracterizado como uma potencial complicação durante o reparo da hérnia diafragmática12.
CONCLUSÃO
A Hérnia de Bochdalek é formada a partir de uma má formação do segmento posterolateral do diafragma. Ela deve ser corrigida independentemente da presença de sintomas por meio da cirurgia. É pertinente que os médicos estejam cientes dessa entidade, particularmente em pacientes que apresentam sintomas abdominais e torácicos combinados. Uma avaliação pré-operatória adequada do tamanho da falha é fundamental para o manejo correto da Hérnia de Bochdalek. Por isso, a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética são ferramentas úteis no diagnóstico. Embora no passado as abordagens pela toracotomia e laparotomia fossem as mais usuais, há um aumento constante das cirurgias realizadas por laparoscopia, com os benefícios associados bem estabelecidos para o doente.
REFERÊNCIAS
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Fonte: https://relatosdocbc.org.br/detalhes/343/herniacao-de-rim-esquerdo-em-adulto-por-defeito-de-bochdalek--correcao-videolaparoscopica
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